20190124_Aplicar já o ensaio COMPASS?

O estudo COMPASS (patrocinado pelo fabricante de rivaroxaban – Xarelto) de prevenção secundária na doença aterosclerótica estável foi publicado no The New England Journal of Medicine (NEJM) de 5 Outubro 2017 (DOI: 10.1056/NEJMoa1709118).

Este ensaio clínico envolveu 27.395 doentes (dtes) com doença das artérias coronárias (sintomática ou revascularizada), doença arterial periférica sintomática ou ambas. Doentes com doença coronária com menos de 65 anos tinham de ter aterosclerose num segundo leito vascular ou pelo menos dois fatores de alto risco. Os critérios de exclusão incluíram alto risco de hemorragia, comorbidades graves, taxa de filtração glomerular <15 mL / minuto, insuficiência cardíaca grave e necessidade de terapia antiplaquetária dupla (o protocolo disponibilizado tem 415 páginas e há ainda 38 paginas de suplemento em apêndice).

O estudo foi interrompido precocemente ao fim de um seguimento médio de 23 meses pois o objetivo primário (morte cardiovascular, AVC ou enfarto do miocárdio) foi atingido em 379 doentes (dts) do grupo de rivaroxaban (2,5 mg x2/por dia) + Aspirina (100 mg por dia) em comparação com 496 dtes do grupo controlo que fez só 100 mg de aspirina por dia (intervalo de confiança -IC- de 0,66 a 0,86 com p<0,001) mas à custa de maior risco de hemorragia significativa (288 dtes versus 170 dtes, IC: 1,40 a 2,05, p<0,001) sem diferenças no risco de hemorragia intracraniana ou morte por hemorragia. Houve 313 mortes (3,4%) no grupo rivaroxabana-mais-aspirina, em comparação com 378 (4,1%) no grupo aspirina-sozinha (IC= 0,71 a 0,96; P = 0,01).
A outra dose de rivaroxaban testada (5mg x2 sem aspirina) não mostrou benefício quanto ao objetivo primário mas associou-se a maior risco de hemorragia que a aspirina isolada.
Eugene Braunwald escreve em editorial do NEJM (DOI: 10.1056/NEJMe1710241): This trial represents an important step forward in thrombocardiology, and it is likely to change practice guidelines.

Noutro estudo incluíram os 6391 participantes do COMPASS com doença arterial periférica (DAP) dos membros inferiores, em particular aqueles que sofreram um evento adverso importante do membro (major adverse limb event – MALE), definido como isquemia grave do membro levando a uma intervenção ou grande amputação vascular. (Anand SS et al. Major adverse limb events in lower extremity peripheral artery disease: COMPASS trial. J Am Coll Cardiol 2018 Mar 11; [e-pub]. – http://dx.doi.org/10.1016/j.jacc.2018.03.008). Dos 6.391 dtes 128 (2,0%) sofreram um MALE (evento adverso importante do membro) durante um período médio de 21 meses de acompanhamento. Após o MALE os riscos acumulados no ano de seguimento foram 95,4% para um novo internamento, 22,9% para amputações vasculares, 8,7% para morte e 3,8% para um evento adverso major cardiovascular. Comparado com a aspirina sozinha, o rivaroxaban associado à aspirina reduziu a incidência de MALE em 43%, amputações vasculares totais em 58% e intervenções vasculares periféricas em 24% (todas as diferenças estatisticamente significativas).

Segundo John Mandrola, em valores absolutos, o estudo COMPASS reduz em 1,3% o objetivo primário (NNT=76) com um aumento do risco de hemorragia de 1,2%.(Mandrola,J.- The COMPASS Trial: Time for Clear Heads, Not Celebration – Medscape – Aug 31, 2017).
NNT= number needed to treat 

No final de 2018 a FDA aprovou esta associação de rivaroxaban (2,5 mg x2/por dia) + Aspirina (100 mg por dia) na prevenção secundária da doença aterosclerótica estável. Nos EUA a terapêutica do rivaroxaban, nesta dose, custa cerca de USD$500 por mês (Medical Letter Vol. 60 (1561) December 3, 2018). Em Portugal só estão disponíveis comprimidos de 10 mg (75,34 € por 30 comprimidos), de 15 mg (101,60 por 42 comprimidos) e 20 mg (73,27 por 28 comprimidos) na pesquisa de medicamentos na base do SNS realizada em 20190124.

O Medical Letter de dezembro 2018 conclui sobre esta terapêutica:Whether the benefits outweigh the drawbacks of taking two daily doses of an expensive second drug that is more likely to cause bleeding and to interact with other drugs is debatable”

Comentário (20190124mgl): Um colega, que muito respeito, perguntou-me se devia iniciar o esquema recomendado pelo ensaio COMPASS num seu doente que tem doença aterosclerótica difusa e muito agressiva. De acordo com os dados disponíveis teria tendência para o não fazer já que não dispomos, ainda, da dose recomendada (comprimidos de 2,5 mg) e que o benefício terá de ser comparado com os riscos (de hemorragia). Aqui, como noutras situações clínicas, o doente deverá ser integrado numa análise beneficio-risco (como mais uma análise de tipo Heart Team) de forma que a sua opção seja devidamente valorizada.